Vinte anos sem Carvalho Calero Print

PGL - Em 25 de março de 1990 falecia em Santiago de Compostela um dos grandes vultos da cultura galega do século XX, Ricardo Carvalho Calero. Em palavras da sua filha Maria Vitória, concluía assim umha «vida densa e austera, dedicada a trabalhar pola Galiza e a sua cultura».

Durante toda a sua vida, Carvalho Calero tivo sempre a Galiza no centro do seu labor, quer no campo literário, quer no científico ou no político. Foi protagonista dos principais acontecimentos do século passado e considerado desde muito jovem umha das figuras centrais da cultura galega. Porém, o seu pensamento crítico e a defesa do reintegracionismo motivárom que nos últimos anos da sua vida sofrera o ostracismo por parte do stablishment cultural-político galego.

Primeiros anos

Carvalho Calero nascera a 30 de outubro de 1910 em Ferrol. Depois dos primeiros estudos numha escola da rua Madalena, estudou no Colégio "Sagrado Coraçom de Jesus", dirigido polo escritor Manuel Comelhas Coimbra, autor da obra dramática Pilara ou grandezas dos humildes, com quem iniciou os seus estudos de latim, e preparou por livre os estudos de Bacharelato.

De muito pequeno, assistiu às sessões de teatro e também de cinema que se celebravam no Teatro Jofre, ao tempo que começou a ler romances, teatro e a fazer os seus primeiros escritos: poemas, alguns já em galego, que publicou na revista Maruxa.

Nos seus primeiros trabalhos, Carvalho Calero contava com o estímulo do socialista e galeguista Jaime Quintanilha, personalidade notável da vida cultural e social ferrolana e galega de aqueles tempos.

Em 1926, aos dezasseis anos, terminou o Bacharelato e matriculou-se na universidade compostelana no de aquela 1º ano do curso de Filosofia e Letras e preparatório de Direito. Desde os primeiros momentos relacionou-se com os estudantes do Seminário de Estudos Galegos: Filgueira Valverde, Sebastiám Gonçález, Ramom Martínez Lôpez... Em 1928 publicou o seu primeiro livro de versos, Trinitarias, que recolhe poemas escritos dos 14 aos 16 anos, todos em espanhol, e o texto dumha conferência «En torno a las ideas comunistas de Platón».

Eram anos de umha grande actividade intelectual e política, em plena ditadura militar de Primo de Rivera. Participou dos movimentos de resistência estudantil, combinando a oposiçom política com a promoçom cultural, chegando a ser presidente da Federaçom Universitária Escolar (FUE), entidade sindical-escolar.

Seminário de Estudos Galegos

A etapa universitária de Carvalho Calero ficou marcada pola sua incorporaçom ao Seminário de Estudos Galegos (SEG), facto que representou a consolidaçom do seu compromisso pola cultura galega, já manifesto durante a adolescência. Ingressou no SEG em abril de 1927 com a leitura de uns poemas. Nele, ademais de membro das secções de "História da Literatura" e de "Ciências Sociais, Jurídicas e Económicas", chegou a exercer como secretário-geral.

O SEG foi o organismo catalisador do ambiente intelectual da época, local de reuniões continuamente freqüentado pola gente do Grupo «Nós»: Vicente Risco, Daniel Castelão, Otero Pedraio ou Lôpez Cuevilhas.

Em 1931 rematou os estudos de Direito com um brilhante expediente académico. Publicou na editora «Nós», de Ângelo Casal, o seu primeiro poemário em galego: Vieiros. No mesmo ano foi cofundador do Partido Galeguista e, posteriormente, membro, junto de Daniel Castelão, Alexandre Bóveda, Lugris Freire, Paz Andrade e Tobio Fernândez, de um «Conselho Assessor» do mesmo.

Juntamente com Luís Tobio contribuiu na elaboraçom do primeiro Anteprojecto de Estatuto de Autonomia para Galiza, de concepçom federalista, que se iniciava assim: «A Galiza é un Estado libre drento da República Federal Española (art. 1º)».

Em 1933, abandonou Compostela e ingressou por concurso como funcionário no Concelho de Ferrol e casou com Mª Inácia Ramos, natural de Valeira.

O labor literário destes anos cristalizou no livro de poemas O siléncio axionllado (1934), nas colaborações em jornais e revistas epocais, e na escrita de duas obras dramáticas: O fillo e Isabel, esta última acabada despois da guerra. Estas peças, pensadas para ser publicadas pola editora Nós, continuárom a linha iniciada em 19 polas Irmandades da Fala, e interrompida pola ditadura de Primo de Rivera, com que o nacionalismo queria demonstrar que o galego era umha língua apta para todos os usos e funções, para todas as classes sociais.

A guerra

Em Janeiro de 1936 terminou Filosofia e Letras, que estudara por livre. Neste mesmo ano, e apesar de constantes obstáculos, calhou com êxito o labor do Partido Galeguista a prol do reconhecimento nacional da Galiza nas Cortes da República, mediante a consecuçom em Referendo dum Estatuto de Autonomia. Porém, por mor da guerra (1936-1939), o Estatuto Galego nom se pudo concretizar até 1980, depois da morte do ditador, a reforma política da ditadura e a restauraçom borbónica.

O estalido bélico surpreendeu Carvalho em Madrid apresentando-se a concurso para catedrático de liceu. Ali coincidiu com a delegaçom galega, Castelão à cabeça, que ia apresentar ante as Cortes espanholas os resultados oficiais do recente referendo estatutário. Estar em Madrid foi a sua salvaçom, pois esta ficou em mãos da República até os dias finais da guerra (1939), enquanto na nossa terra, o bando sublevado logrou impor-se em pouco tempo, inciando umha brutal repressom e extermínio físico de todas aquelas pessoas fiéis à República, como o fôrom a gente do Partido Galeguista.

Deste modo cruel, o imenso esforço de reconstruçom nacional de que Ricardo Carvalho Calero foi protagonista activo, iniciado na década de 20 polas Irmandades da Fala e continuado nos anos 30 polo Partido Galeguista; e que tinha como ponto fulcral e culminante a consecuçom do Estatuto de Autonomia para a naçom galega, ficou cortado de um modo brutal polo golpe militar e a ditadura fascista.

Estando, pois, em Madrid, incorporou-se como miliciano ao exército republicano, sendo elevado a oficial e deslocado a Valência e mais tarde à Andaluzia, onde foi detido. Em 1939, terminada a guerra, foi julgado e condenado a cadeia perpétua por «separatista» e oficial do exército republicano. Finalmente a pena imposta foi de 12 anos e um dia de prisom maior, ficando no cárcere até o ano 41, em que regressou a Ferrol em liberdade controlada, dedicando-se ao ensino privado, pois foi privado de se poder colegiar. Os amargos recordos desses anos ficárom imortalizados no seu romance Scórpio e na obra poética.

Nos anos de pós-guerra o labor literário foi muito intenso, e escreveu três peças dramáticas e iniciou-se como romancista. Também começou a colaborar com o jornal La Noche sob o pseudónimo de Fernando Cadaval.

Etapa Fingói

Já em 1950 deslocou-se para Lugo, onde exerceu de professor e director do Colégio Fingói. Na cidade amuralhada desenvolveu a sua paixom polo teatro com várias encenações. No mesmo ano fundou-se a editora Galáxia, e desde o começou colaborou estreitamente com o projecto, e mesmo estivo presente na reuniom fundacional. Um ano depois publicou A Gente da Barreira, primeiro romance publicado em galego na posguerra, e primeiro prémio da Editora “Bibliófilos Gallegos” no ano anterior. Em 1954, doutorou-se em Madrid com a tese Aportaciones fundamentales a la literatura gallega contemporánea.

Em 17 de Maio de 1958 ingressou na “Academia Gallega” com o discurso Contribuiçom ao estudo das fontes literárias de Rosalia, e cinco anos depois, em 1963, publicou, fruto de muitos anos de trabalho de investigaçom, a monumental História da Literatura Galega Contemporânea, obra básica e basilar da crítica literária galega.

Em 1964-65 deixou a direcçom do Fingói e incorporou-se como professor interino de Língua e Literatura Galegas na Universidade de Compostela. No ano seguinte ganhou a vaga de adjunto no Liceu Feminino "Rosalia de Castro", também na capital nacional. Em 1966 apareceu a primeira ediçom da sua Gramática elemental del gallego común, que representou na cultura galega um acontecimento de enorme transcendência.

Em Santiago de Compostela

A começos da década de 70 logrou por concurso a primeira Cátedra de Língüística e Literatura Galega na Universidade de Compostela -única universidade galega na altura-, facto fundamental para a dignificaçom e divulgaçom da nossa língua e cultura, à vez que escola dos seus primeiros ensinantes.

Com a morte em 1977 do presidente da "Real Academia Gallega", Sebastiám Martinez Risco, muitos organismos e instituições do país propugérom Carvalho como a pessoa óptima para ocupar esta vaga, mas nom aceitou. Nestes anos começou também a recopilaçom da sua obra ensaística espalhada por revistas e jornais: Sobre língua e literatura galega (1971); Estudos Rosalianos: aspectos da vida e obra de Rosalia de Castro (1979); e Libros e Autores Galegos I (1979).

Em 1979 formou parte da Comissom Lingüística da Junta Pré-Autonómica, que elaborou umhas Normas Ortográficas do Idioma Galego. Aqui manifestou-se a divisom, mais ou menos equilibrada, entre as duas tendências normalizadoras que historicamente, desde o Rexurdimento, vêm disputando a questom da normalizaçom da língua: a reintegracionista e a isolacionista. As normas que daí saírom admitiam, desse modo, um certo número de soluções duplas, que o tempo deveria dirimir, dando prevalência a umha sobre outra. Feito este labor, Carvalho demitiu-se, e a comissom dissolveu-se.

Porém, o ferrolano começou a ser um elemento molesto para o novo poder na Junta da Galiza pola sua firme atitude em favor do reencontro da família lingüística galego-portuguesa. Carvalho Calero, abandeirado e máximo defensor da tendência reintegracionista, nom fazia com isto mais do que seguir a linha traçada polo nacionalismo histórico, que foi sempre reintegracionista, de Murguia e as Irmandades da Fala, até o Partido Galeguista, do que ele fijo parte. Na década de 70, naturalmente, o reintegracionismo era também partilhado polo nacionalismo e polos sectores máis comprometidos com a nossa cultura.

Decreto Filgueira e últimos anos

O golpe de comando deu-se em 1982 aquando as "Normas Ortográficas do Idioma Galego", feitas por consenso em 79, som anuladas, numha escura manobra -instigada da Alianza Popular no Governo autonómico e apoiada por alguns dos antigos seguidores e colaboradores de Carvalho Calero-, e som aprovadas, mediante Decreto impositivo ("Decreto Filgueira"), as ainda vigentes -com algumhas reformas intermédias- Normas Ortográficas e Morfolóxicas do Idioma Galego, normas que consagram o isolamento do galego e do português, e a satelizaçom do nosso idioma, que passa a depender da forma, modelo e critérios aplicados para o espanhol, nom apenas na grafia.

Carvalho, que nom renegou da sua postura, viu-se relegado e marginalizado do poder, mesmo sendo desprezado e caluniado, até institucionalmente, o que foi umha experiência sumamente dolorosa. Porém o insigne galeguista soubo demonsstrar a sua elevada estatura moral e a sua admirável ética e dignidade como pessoa, pois nunca devolveu as ofensas, e sempre que respondia era com fina ironia e benévolo humorismo.

Em 1980 reformou-se e abandonou a docência, mas a sua actividade criativa multiplicou-se, cultivando todos os géneros: poesia, romance, teatro, ensaio... Quatro anos mais tarde recusou o convite feito polo seu antigo companheiro do Seminário de Estudos Galegos, Filgueira Valverde, instalado na oficialidade, para fazer parte do recém criado Conselho da Cultura Galega. Já em 1987 publica Scórpio, considerado por boa parte da crítica o melhor romance escrito em galego.

Afastado e marginalizado do poder, recebeu contínuas homenagens das amizades, do alunado e de admiradores. Ademais, foi figura central em numerosos congressos sobre a nossa cultura, língua e literatura.

Foi nomeado membro ordinário da Academia das Ciências de Lisboa (ACL), membro de honra da Associaçom Galega da Língua (AGAL), da Associaçom de Escritores em Língua Galega (AELG), e também das Irmandades da Fala.

A 7 de janeiro de 1990 regressou à sua cidade natal para ser nomeado Filho Predilecto de Ferrol. Pouco tempo depois, a 25 de março de 1990, faleceu em Santiago de Compostela. No mesmo ano, a Cámara de Ferrol, a iniciativa da Sociedade Cultural Medúlio, institui o Certame Anual de Narrativa e de Investigaçom Lingüísitico-Literária Carvalho Calero, o único de muitos que se celebram no país que admite liberdade normativa às pessoas concorrentes.

Seis anos mais tarde, em acordo plenário, o Parlamento da Galiza nomeou-no por unanimidade Filho Ilustre da Galiza, ao tempo que instalou a sua imensa biblioteca pessoal num local do próprio Parlamento. Desde 2001, diversos colectivos, especialmente a Fundaçom Artábria e a AGAL, vêm trabalhando para lograr que se lhe dedique um Dia das Letras Galegas, pedido que sistematicamente é rejeitado pola Real Academia Galega.

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